O sistema jurídico pátrio, especialmente o ramo do Direito de Família, reconhece diferentes tipos de vínculo de parentesco. A paternidade e a filiação normalmente se constituem pela consanguinidade, que é a afinidade por laços de sangue. Ou seja, é a relação entre pai e filho que se constitui de maneira biológica, por meio da reprodução sexual entre um homem e uma mulher. Dessa relação origina um ser humano, com carga genética provinda do DNA de sua mãe combinado ao de seu pai. Sob a ótica do Direito, pelo ponto de vista do filho, sua relação com o pai é denominada de filiação biológica. Pelo ponto de vista do pai ou da mãe, sua relação com o filho é denominada de paternidade ou maternidade biológica.
Acontece que a paternidade e a filiação não se constituem apenas pelo fator biológico da reprodução sexual. O Direito de Família reconhece vínculos sociais e afetivos. A máxima “pai é quem cria” surte efeitos no campo do Direito. Assim, a paternidade e a filiação ganham uma dimensão muito maior, que ultrapassam os muros da Biologia, atingindo os campos da Sociologia, com base na ideia de afetividade social.
Destarte, pode-se dizer que a paternidade e a filiação surgem também através de fatos sociais, reconhecidos pelo Direito, que unem pai e filho que não possuem vínculo sanguíneo entre si. Mas, o seu vínculo é constituído pelo afeto, carinho, cuidado, amor e proteção. É o que o Direito chama de “paternidade socioafetiva” e “filiação socioafetiva”.
Existem normas jurídicas que sustentam a paternidade e a filiação socioafetivas. Não podemos nos olvidar antes dos mandamentos constitucionais. A Constituição Federal da República Brasileira de 1988 consagrou a família como instituição essencial ao desenvolvimento da pessoa humana, principalmente da criança e do adolescente. Assim, com fundamento no princípio da proteção integral da criança e do adolescente, a CF prestigiou os vínculos de afeto formados no seio familiar, conforme disposto em seu art. 227, caput,
“É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de colocá-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.”
Como se não bastasse, o § 6.º do mesmo art. 227, consagra a equiparação de direitos entre os filhos havidos ou não do casamento,
“Os filhos, havidos ou não da relação do casamento, ou por adoção, terão os mesmos direitos e qualificações, proibidas quaisquer designações discriminatórias relativas à filiação.”
É de se dizer, ainda, que o o parágrafo supramencionado se refere à adoção, espécie de vínculo jurídico não biológico, de procedimento regulado pela Lei 8.069, de 13 de julho de 1990 – Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), formado entre pai e filho que não possuem consanguinidade, muito embora tenham o vínculo socioafetivo que criam as figuras jurídicas da paternidade e filiação socioafetivas.
Nesse diapasão, cabe transcrever os preceitos insertos na regra trazida pelo art. 41 do ECA,
“A adoção atributiva condição de filho ao adotado, com os mesmos direitos e deveres, inclusive sucessórios, desligando-o de qualquer vínculo com pais e parentes, salvo os impedimentos matrimoniais.”
Pode-se extrair, então, que a adoção, além de conceder ao filho adotivo os mesmos direitos e deveres concedidos ao filho natural, desliga os vínculos biológicos anteriores com pais e parentes. Prestigia-se, assim, o nova constituição familiar de afeto.
Além disso, é importante ressaltar os artigos concernentes à matéria estudada do Código Civil. Nele, especialmente no artigo 1593, vê-se a noção de parentesco atual:
“O parentesco é natural ou civil, conforme resulte de consanguinidade ou outra origem.”
Clara se vê a abordagem legislativa do tema. O Direito Civil prevê que o parentesco pode ter outra origem que não a consanguinidade. E, mais adiante, observam outros dispositivos que assentam ainda mais a noção de paternidade não biológica, tais como a norma disposta no art. 1597:
“Presumem-se concebidos na constância do casamento os filhos:
(...)
V - havidos por inseminação artificial heteróloga, desde que tenha prévia autorização do marido.”
Ou seja, o legislador consagrou a ideia de que a paternidade pode ser concebida por meio da inseminação artificial heteróloga, que é aquela em que a carga genética masculina provém de outro homem fora da relação matrimonial. Assim, apesar de o filho não possuir descendência biológica e genética do pai, o Direito previu a paternidade jurídica, com base no fundamento social e do vínculo de afeto que se desenvolverá no seio familiar.
Não só a lei, como a doutrina e a jurisprudência pátria, consagram a ideia da paternidade e da filiação socioafetivas, as quais, em muitos casos, podem se sobrepor até mesmo à paternidade biológica. Ocorre isso porque a sociedade é cultural. A cultura molda as relações humanas. Prestigia-se muito mais os laços culturais que os laços biológicos, e, com base no princípio da proteção integral da criança e no princípio do melhor interesse do menor, os vínculos sociais e de afeto preponderam sobre os vínculos de sangue. O carinho, o cuidado, a proteção, a segurança, entre outros valores, são concernentes ao vínculo afetivo entre pai e filho.
Tais valores são indispensáveis e devem ser o norte da relação entre pais e filhos, em virtude de trazerem maior bem-estar ao menor e propiciar melhores condições ao desenvolvimento pleno da criança e do adolescente.
De acordo com Maria Berenice Dias, a filiação socioafetiva corresponde à verdade aparente e decorre do direito à filiação. O filho é titular do estado de filiação, que se consolida na afetividade. Não obstante, o art. 1.593 evidencia a possibilidade de diversos tipos de filiação, quando menciona que o parentesco pode derivar do laço de sangue, da adoção ou de outra origem, cabendo assim à hermenêutica a interpretação da amplitude normativa prevista pelo CC de 2002. [1]
Por outro lado, Orlando Gomes manifesta que a posse do estado de filho constitui-se por um conjunto de circunstâncias capazes de exteriorizar a condição de filho legítimo do casal que cria e educa. Contudo, ainda entende, ser através da procriação ou adoção que se estabelece o estado de filho quando menciona que este resulta da procriação, no casamento, ou fora dele, ou de ficção legal consistente na adoção. Para Orlando Gomes, o estado de filiação tem sua origem na genética ou na presunção jurídica. [2]
Alinhando-se à consagração da paternidade socioafetiva os Tribunais têm entendido o seguinte acerca do tema:
“EMENTA: APELAÇÃO. ADOÇÃO. Estando a criança no convívio do casal adotante há mais de 4 anos, já tendo com eles desenvolvido vínculos afetivos e sociais, é inconcebível retira-la da guarda daqueles que reconhece como pais, mormente, quando a mãe biológica demonstrou interesse em dá-la em adoção, depois se arrependendo. Evidenciado que o vínculo afetivo da menor, a esta altura da vida encontra-se bem definido na pessoa dos apelados, deve-se prestigiar, como reiteradamente temos decidido neste colegiado, a PATERNIDADE SOCIOAFETIVA, sobre a paternidade biológica, sempre que, no conflito entre ambas, assim apontar o superior interesse da criança. Negaram Provimento” (TJRS. Apelação Cível nº 000190039. Sétima Câmara Cível. Relator: Des. Luiz Felipe Brasil Santos. Julgado em 02/05/2001).
Para ilustrar a efetivação do princípio nos Tribunais, tem-se o caso do menino Sean Richard Goldman, que é disputado pelo pai biológico e o pai socioafetivo (padrasto). De acordo com recente decisão proferida pelo Ministro do Supremo Tribunal Federal, Marco Aurélio, suspendeu sentença que determinou o envio do menor brasileiro Sean aos Estados Unidos. [3]
Em sua fundamentação, dentre outros, encontra-se o direito a dignidade humana, bem como a prevalência dos interesses de Sean, possibilitando assim, o desenvolvimento harmonioso de sua personalidade, crescendo no meio familiar a que está vinculado, em clima de felicidade, de amor e de compreensão. [4]
Desse modo, pode-se invocar a afetividade em duas perspectivas: como fundamento para o estabelecimento de vínculos paterno-filiais e como forma de impedir o rompimento destes mesmos vínculos, impossibilitando a sua desconstituição. [5]
Nas constituições da família moderna, o afeto é a essência da formação humana, que nasce com a convivência, propiciando o desenvolvimento saudável, adequando o homem ao meio social. Para José Sebastião de Oliveira, a afetividade faz com que a vida em família seja sentida da maneira mais intensa e sincera possível, e isto só será possível caso seus integrantes vivam apenas para si mesmos: cada um é contribuinte da felicidade de todos.[6]
Não há como se exercer a paternidade, biológica ou não, sem a presença do afeto, norteando a relação, partindo-se do pressuposto que a família é um instrumento de realização do ser humano. [7]
Pertinente se faz, para concluir, trazer o estudo e o pensamento de Maria Christina de Almeida:
“É fato que o elo biológico que une pais e filhos não é suficiente a construir uma verdadeira relação entre os mesmos. Basta verificar nas demandas de paternidade, que, muitas vezes, o filho conhece seu pai por meio de DNA, mas não é reconhecido por ele por meio do afeto. [...] É necessário construir o elo, cultural e afetivamente, de forma permanente, convivendo e tornando-se, cada qual, responsável pelo dia após dia. Tais reflexões demonstram que se vive hoje, no Direito de Família contemporâneo, um momento em que há duas vozes soando alto: a voz do sangue (DNA) e a voz do coração (AFETO). Isto demonstra a existência de vários modelos de paternidade, não significando, contudo, a admissão de mais de um modelo deste elo a exclusão de que a paternidade seja, antes de tudo, biológica”.[8]
[1] http://www.ambito-juridico.com.br/site/index.php?n_link=revista_artigos_leitura&artigo_id=9280 > acesso em 27.04.2014
[2] Idem 1.
[3] Idem 1.
[4] Idem 1.
[5] Idem 1.
[6] Idem 1.
[7] Idem 1.
[8] ALMEIDA, Maria Christina de. A paternidade Socioafetiva e a formação da personalidade. Disponível em: < http://www.ibdfam.org.br/?artigos&artigo=54> Acesso em 27.04.2014.