Contratos em Tempos de COVID-19 (27.03.2020)
De proêmio, importante salientar que trataremos de uma forma geral dos contratos civis, empresariais ou de consumo. Ou seja, não falaremos do contrato de trabalho, o qual possui uma dinâmica em legislação própria, em outro ramo do direito.
Também acenamos ao leitor que este artigo é fruto da leitura de artigos de professores e juristas, tais como Carlos Elias de Oliveira, que tratou do inadimplemento e quebra antecipados, Aline Miranda Valverde Terra, que bem definiu os efeitos da pandemia em contratos de locação em shopping center, Priscilla Chater, que tempestivamente alertou sobre a força maior, bem como Marcelo Matos Amaro da Silveira, que referiu aos encargos moratórios e Anderson Schreiber, que descreveu os principais argumentos do dever de renegociar.
Antes, também, pensamos não ser prudente já enquadrar a pandemia de corona vírus e as posteriores determinações do poder público (fato do príncipe) como eventos imprevistos, extraordinários, fortuitos ou de força maior.
É preciso, segundo o Prof. Schreiber, cuidado com fórmulas generalizantes, devendo-se proceder à análise do contrato em concreto. Assim, embora tais fatos sejam alheios à vontade das partes, eles podem ou não, a depender do caso, consubstanciarem em excludentes de responsabilidade ou provocarem a chamada onerosidade excessiva, nem sempre haverá esta consequência.
Para tanto, deve haver impacto econômico direto na relação contratual, a impossibilidade ou dificuldade no cumprimento das obrigações contratuais.
Sabe-se que o contrato é um arranjo de vontades cujo pressuposto é a previsibilidade dos acontecimentos (ex: assino um contrato agora, para pagar no dia tal, receber o produto no dia tal, receber o serviço no dia tal).
Acontece que durante o período de cumprimento do contrato em concreto, principalmente em contratos de prestação continuada e execução diferida (que se prolongam no tempo) podem acontecer eventos que não estavam previstos, que causem uma impossibilidade ou dificuldade no cumprimento das obrigações contratuais.
Assim, é preciso não perder a noção de que o inadimplemento contratual, seja relativo ou absoluto, é verificado mediante aferição de culpa do devedor. Se o devedor, que não está em mora, não deu causa ao inadimplemento, por um comportamento culposo, as perdas e danos não lhe poderão ser imputadas.
Tal questão vem disposta no art. 392 do Código Civil.
“Art. 392. Nos contratos benéficos, responde por simples culpa o contratante, a quem o contrato aproveite, e por dolo aquele a quem não favoreça. Nos contratos onerosos, responde cada uma das partes por culpa, salvo as exceções previstas em lei.”
Uma exceção é colocada no artigo seguinte (393, CC), contudo. Trata-se daquelas hipóteses, onde, no contrato, uma das partes tenha se responsabilizado pelos prejuízos decorrentes de força maior ou caso fortuito.
“Art. 393. O devedor não responde pelos prejuízos resultantes de caso fortuito ou força maior, se expressamente não se houver por eles responsabilizado.”
Caso fortuito, para Silvio Rodrigues, seria aquele fato ligado à pessoa, enquanto força maior seria aquele fato ligado a acontecimentos externos à pessoa (ex: enchentes, epidemias). São, portanto, excludentes de responsabilidade, salvo se as partes não assumiram seu risco. Isso ocorre normalmente em contratos empresariais e complexos, onde há a distribuição e gestão do risco contratual.
Mas a ideia principal desses dois dispositivos é que sem culpa não há inadimplemento contratual absoluto nem mesmo a mora, se decorrer de uma impossibilidade momentânea ou permanente.
Priscilla Chater é categórica: “Assim, malgrado o princípio da exoneração, deve haver um impedimento real e comprovado que justifique a impossibilidade de cumprimento do dever contratualmente assumido e não um pretexto genérico.”
E alerta: “Contudo, se o impedimento, embora real, for apenas temporário, o cumprimento da obrigação deverá, a princípio, ser suspenso, salvo se o atraso dele resultante justificar a rescisão do contrato. Se o impedimento for definitivo, o contrato, em regra, deverá ser rescindido, restabelecendo-se, sempre que possível, o status quo ante.”
Ou seja, caso haja uma dificuldade, não haverá totalmente a excludente de responsabilidade, mas se entende que a cobrança da multa moratória ou dos juros moratórios são abusivos (art. 187 do CC), posto que contrária à boa-fé objetiva ou a lealdade que deve guiar as partes durante o caminho contratual (art. 422 do CC). Isto é, multa moratória e juros moratórios não podem ser aplicados quando o devedor não deu causa à situação.
Nesse contexto, Marcelo Matos da Silveira aplaude a decisão dos principais bancos do Brasil, que, na segunda-feira passada, em conjunto com o Conselho Monetário Nacional, e agindo dentro dos mais estritos parâmetros da boa-fé, anunciaram que não irão realizar cobrança de encargos moratórios pelos próximos 60 dias para clientes pessoa física e micro e pequenas empresas (que seria ainda melhor se fosse estendida para todos os clientes).
Por outro lado, caso os fatos do príncipe gerem, naquele contrato em concreto que se prolonga no tempo (de execução diferida ou prestação continuada), uma onerosidade excessiva, devem as partes verificarem ver se há previsão de resolução ou revisão do contrato.
Art. 478. Nos contratos de execução continuada ou diferida, se a prestação de uma das partes se tornar excessivamente onerosa, com extrema vantagem para a outra, em virtude de acontecimentos extraordinários e imprevisíveis, poderá o devedor pedir a resolução do contrato. Os efeitos da sentença que a decretar retroagirão à data da citação.
Art. 479. A resolução poderá ser evitada, oferecendo-se o réu a modificar equitativamente as condições do contrato.
Nesse tópico particularmente, deve-se atentar ao momento de formação do contrato, justamente para se conceber se a pandemia de corona vírus e os posteriores fatos do príncipe poderiam ser considerados como eventos extraordinários e imprevisíveis.
Outrossim, inúmeros contratos podem perder totalmente a utilidade, bem como podem apresentar lacunas quanto ao que se deve fazer nesses eventos imprevisíveis. Abre-se espaço para se prestigiar a vontade presumida das partes.
Se, contudo, diz Carlos Elias, “durante a relação contratual, o devedor adotar condutas que possam ameaçar o êxito futuro do cumprimento da obrigação, poderá o credor adotar medidas prévias ao vencimento da obrigação, mais especificamente estas duas: a exceção de inseguridade (art. 477 do Código Civil – CC) ou a quebra antecipada do contrato (doutrina e aplicação analógica dos arts. 395, parágrafo único, 475 e 477 do CC).”
A quebra antecipada do contrato pode ser decorrente de uma conduta culposa do devedor (também chamada de inadimplemento antecipado ou inadimplemento antes do termo) ou decorrente de um caso fortuito (chamada de quebra antecipada não culposa do contrato).
Ambas ocorrem quando, antes do vencimento, o objeto do contrato tenha se tornado inútil ou impossível. E a vontade presumível auxilia o operador do direito para saber se é cabível a quebra antecipada do contrato.
O autor evidentemente ressalva o prestígio que deve haver ao princípio da conservação dos negócios jurídicos, assim como Anderson Schreiber que acredita que, antes da revisão, há um dever de renegociar com base na boa-fé.
Passando estes tópicos, convém dar exemplos dos contratos mais sujeitos a interferências do fato do príncipe
Nos contratos de transporte aéreo, as empresas aéreas têm regulamentação própria, e, conforme explica Felipe P. Waetge: “Neste sentido, na data de 18 de março de 2020, foi publicada a Medida Provisória nº 925/2020, pela Presidência da República, contendo medidas emergenciais para a aviação civil brasileira, inclusive no tocante ao reembolso e remarcação de bilhetes. O estado de urgência verificado justifica a precaução, inclusive para garantir o equilíbrio econômico nas relações, evitando o colapso do sistema aeroviário, sem que os Direitos do Consumidor sejam relegados. Nos termos da Medida Provisória, ao consumidor são facultadas duas alternativas, com implicações específicas, quais sejam: a) o cancelamento da passagem e reembolso dos valores pagos; ou b) a remarcação da data da viagem.”
Quanto aos contratos de prestação de serviços, como academia, cursos e sessões, normalmente as partes estão suspendendo os contratos. Empresas de festas e eventos de formatura estão orientando a remarcação em outra data e preferindo optar pelo não cancelamento do contrato.
Portanto, são essas as considerações a respeito da influência da pandemia de Covid-19 nos contratos, podendo trazer múltiplas consequências: desde a quebra antecipada dos contratos até a sua revisão ou rescisão, passando por inúmeras soluções: como o dever de renegociar e a alegação de força maior.
Bibliografia
CHATER, Priscilla. Coronavírus e força maior: o que diz o seu contrato? Conjur. In: https://www.conjur.com.br/2020-mar-19/priscilla-chater-coronavirus-forca-maior-contrato . Acesso em 21.03.2020.
OLIVEIRA, Carlos E. Elias de. O coronavírus, a quebra antecipada não culposa de contratos e a revisão contratual: o teste da vontade presumível. Migalhas de Peso. In: https://www.migalhas.com.br/depeso/321885/o-coronavirus-a-quebra-antecipada-nao-culposa-de-contratos-e-a-revisao-contratual-o-teste-da-vontade-presumivel . Acesso em 21.03.2020.
RODRIGUES, Silvio. Curso de Direito Civil: dos contratos e das declarações unilaterais de vontade. São Paulo: Saraiva, 2004.
SCHREIBER, Anderson. Devagar com o andor: coronavírus e contratos - Importância da boa-fé e do dever de renegociar antes de cogitar de qualquer medida terminativa ou revisional. Migalhas Contratuais. In: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-contratuais/322357/devagar-com-o-andor-coronavirus-e-contratos-importancia-da-boa-fe-e-do-dever-de-renegociar-antes-de-cogitar-de-qualquer-medida-terminativa-ou-revisional . Acesso em 26.03.2020.
SILVEIRA, Marcelo Matos Amaro da. Encargos moratórios, coronavirus e boa-fé objetiva. In: https://flaviotartuce.jusbrasil.com.br/artigos/823561131/encargos-moratorios-coronavirus-e-a-boa-fe-objetiva . Acesso em 23.03.2020.
TERRA, Aline de Miranda Valverde. Covid-19 e os contratos de locação em shopping center. Migalhas de Peso. In: https://www.migalhas.com.br/depeso/322241/covid-19-e-os-contratos-de-locacao-em-shopping-center . Acesso em 21.03.2020.
WAETGE, Felipe Pagliara. COVID-19 e os Direitos do Consumidor. In: https://www.wpmg.adv.br/single-post/2020/03/20/COVID-19-e-os-Direitos-do-Consumidor. Acesso em 27.03.2020.