Interpretação dos negócios jurídicos e dos contratos (17.03.2022)
O contrato é o acordo de vontade de duas ou mais partes. Este acordo vincula direitos e obrigações entre as partes.
Ocorre que, no decorrer do cumprimento dessas obrigações, as partes podem suscitar dúvidas quanto à interpretação de seus termos.
Nesse sentido, como se deve dar esta interpretação?
Primeiramente, antes de responder essa pergunta, cabe elucidar o que é interpretar.
De acordo com o Dicionário Michaelis, interpretar é: “1. Determinar com precisão o sentido de um texto. 2. Descobrir o significado obscuro de algo. 3. Dar determinado sentido a; julgar.”[1]
Em termos jurídicos, interpretar é descobrir o sentido e alcance do texto jurídico.
É certo que as expressões humanas, em sua maioria, são unívocas: isto é, tem apenas um único sentido. Porém, outras expressões acabam provocando uma certa ambiguidade ou sendo plurívocas, podendo expressar mais de um sentido.
Isso é natural, principalmente quando estamos estabelecendo acordos extensos e com conteúdo abrangente. Nesse sentido, podem as partes e seus advogados não concordar com o sentido que se atribui a determinadas expressões.
É preciso entender que o contrato é expresso em linguagem humana, de modo que nem sempre seu conteúdo é objetivo. É preciso atentar-se, portanto, à intenção das partes naquele específico contexto de negociação.
Por essa razão que o Código Civil dispõe:
Art. 112. Nas declarações de vontade se atenderá mais à intenção nelas consubstanciada do que ao sentido literal da linguagem.
Em comentários ao art. 112 do Código Civil, Nelson Nery e Rosa Nery ensinam uma importante diferenciação:
“Em se tratando de negócio jurídico gratuito, como a doação, e negócio jurídico testamentário, deve prevalecer a vontade real, sobre a efetivamente declarada, ao passo que, em outros tipos de negócio, deve-se emprestar maior relevância à declaração, ou melhor, ao conteúdo da declaração, sempre levando-se em conta a “intenção” do declarante, buscada no corpo da declaração.” [2]
Nesse sentido, é interessante notar um caso julgado pelo Superior Tribunal de Justiça, trazido pelos autores supramencionados, em que o doador efetuou uma doação a São Sebastião. Como o Santo não tem patrimônio, certo é que a interpretação foi no sentido de considerar a Igreja como donatária (STJ, 3.ª T., REsp 1.269.544/MG, rel. Min. João Otávio de Noronha, j. 26.05.2015, DJe 29.05.2015).
Tomando por base o art. 113 do Código Civil, verifica-se que a boa-fé e os usos também têm importante destaque na definição do sentido e alcance dos contratos. Neste proveito, pode até mesmo uma expressão ter sentido diverso a depender da região brasileira em que estiver os contratantes.
Por essa razão que o Código Civil dispõe:
Art. 113. Os negócios jurídicos devem ser interpretados conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração.
Quanto aos entendimentos jurisprudencial e doutrinário acerca da matéria, temos a famigerada Súmula 5 do STJ: “A simples interpretação de cláusula contratual não enseja recurso especial”, e o Enunciado 409 da V Jornada de Direito Civil: “Os negócios jurídicos devem ser interpretados não só conforme a boa-fé e os usos do lugar de sua celebração, mas também de acordo com as práticas habitualmente adotadas entre as partes.”
Por sua vez, valendo-se do direito comparado, dentre as regras sistematizadas por Pothier, tem-se uma delas que prescreve que “as cláusulas do mesmo instrumento devem ser interpretadas umas pelas outras, quer as precedam, quer as sigam” (op. cit., vol. I, n. 96).[3]
É o chamado princípio da totalidade e intrínseca coerência.
Além disso, importante baliza no passado para interpretar o contrato era o Código Comercial brasileiro, seguindo sistema diverso do adotado pelo Código Civil (LGL\2002\400), que dispunha no art. 131, o seguinte:
“sendo necessário interpretar as cláusulas dos contratos, a interpretação, além das regras sobreditas, será regulada sôbre as seguintes bases: 1 – a inteligência simples e adequada, que fôr mais conforme à boa-fé e ao verdadeiro espírito e natureza do contrato, deverá sempre prevalecer à rigorosa e restrita significação das palavras; 2 – as cláusulas duvidosas serão entendidas pelas que não o forem, e que as partes tiverem admitido; e as antecedentes e subseqüentes, que estiverem em harmonia explicarão as ambíguas (…); 5 – nos casos duvidosos, que não possam resolver-se segundo as bases estabelecidas, decidir-se-á em favor do devedor.”
Bem por isso que, a partir de 2019, o legislador consagrou essas regras e foram incluídos, pela Lei Federal 13.874, os seguinte parágrafos e respectivos incisos ao art. 113. Vejamos abaixo.
- 1º A interpretação do negócio jurídico deve lhe atribuir o sentido que:
I - for confirmado pelo comportamento das partes posterior à celebração do negócio;
II - corresponder aos usos, costumes e práticas do mercado relativas ao tipo de negócio;
III - corresponder à boa-fé;
IV - for mais benéfico à parte que não redigiu o dispositivo, se identificável; e
V - corresponder a qual seria a razoável negociação das partes sobre a questão discutida, inferida das demais disposições do negócio e da racionalidade econômica das partes, consideradas as informações disponíveis no momento de sua celebração.
- 2º As partes poderão livremente pactuar regras de interpretação, de preenchimento de lacunas e de integração dos negócios jurídicos diversas daquelas previstas em lei. (Incluído pela Lei nº 13.874, de 2019)
Especificamente quanto ao último inciso do § 1.º, tal regra já vinha lecionada na doutrina de Carlos Maximiliano, que, referindo-se às cláusulas sobre cuja significação os interessados não chegaram a acordo, “interpretam-se pelas que não despertaram divergência; com harmonizar as antecedentes com as subseqüentes, explicam-se as ambíguas”[4]
Por fim, o próprio Código Civil, em seu art. 114, faz constar:
Art. 114. Os negócios jurídicos benéficos e a renúncia interpretam-se estritamente.
Em suma, essas são as regras de interpretação do negócio jurídico ou dos contratos. Algumas delas, a própria lei enumera e outras se tratam de regras amadurecidas na doutrina e jurisprudência. São elas que balizarão o intérprete na ocasião em que for suscitada dúvida quanto ao adequado sentido e expressão das disposições estipuladas pelas partes.
[1] Interpretar | Michaelis On-line (uol.com.br)
[2] NERY JR., Nelson. NERY, Rosa Maria de Andrade. Código Civil Comentado. 13 ed. São Paulo: Ed. RT, 2022.
[3] COSTA, Moacyr Lobo da. Revista dos Tribunais RT 414/39 ago./1970.
[4] MAXIMILIANO, Carlos. Hermenêutica e Aplicação do Direito. 2.ª ed., pág. 356.