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A vacina é obrigatória? (23/02/2022)

Toda vez que ouvimos falar em uma determinação do poder público com finalidade de restringir uma liberdade individual ou coletiva, estamos falando do poder de polícia do Estado.

O poder de polícia nada mais é que uma manifestação da soberania estatal com fim de restringir ou limitar direitos e liberdades dos cidadãos.

Esta intervenção na vida privada deve ter guarida no princípio da legalidade, o qual, em âmbito administrativo, pressupõe a autorização de uma norma para a atuação do Estado.

Esta norma, por sua vez, deve estar calcada em normas de hierarquia superior e em consonância com as normas constitucionais.

Porém, na prática, esta congruência entre a norma limitadora e a norma constitucional não é tão simples de se verificar. Isso porque, no sistema jurídico, há vários princípios que, em determinadas situações, podem colidir uns com os outros.

Vale mencionar que a Constituição Federal não trata diretamente da imunização ou da vacinação, mas sim de uma forma mais genérica da saúde (art. 6.º, caput e art. 196 da CF[1]). Porém, a nossa Carta Magna também trata da liberdade individual, em suas várias vertentes (art. 5.º, caput, II,[2] IV, XV, da CF).

Dessa forma, como é que ficam o direito à saúde e a liberdade individual no contexto da pandemia de COVID-19?

Foi possível observar que vários Estados e Municípios passaram a expedir decretos que limitavam a liberdade individual e a liberdade pública, restringindo o acesso a determinados locais, impondo quarentena, isolamento, entre outras medidas.

E com o advento das vacinas anti-Covid-19, o Poder Público determinou a vacinação da população, cominando sanções pelo seu descumprimento, tais como o impedimento de acesso a determinados espaços ou as limitações de ir e vir sem apresentação do cartão de vacinação.

Mas, afinal, a vacina é obrigatória no Brasil? Ou seja, pode o Estado determinar a imunização à força?

Segundo o artigo 3.º da Lei 6259/1975, “cabe ao Ministério da Saúde a elaboração do Programa Nacional de Imunizações, que definirá as vacinações, inclusive as de caráter obrigatório.”

O fato é que a vacina contra a Covid tem uma diferença essencial em relação a outras vacinas cuja obrigatoriedade é aceita sem problemas: ela não consta do Plano Nacional de Imunização (PNI), apenas no Plano Nacional de Operacionalização da Vacinação contra a Covid-19 (PNO).[3]

Mas vale lembrar que, no ano de 2020, foi promulgada a Lei Federal 13.979 (Lei de enfrentamento da pandemia de COVID-19), que, em seu art.  3.º, dispõe: “Para enfrentamento da emergência de saúde pública de importância internacional de que trata esta Lei, as autoridades poderão adotar, no âmbito de suas competências, entre outras, as seguintes medidas: (...) III - determinação de realização compulsória de: (...) d) vacinação e outras medidas profiláticas”.

Além disso, as autoridades teriam que seguir as limitações da própria Lei 13.979/2020, que coloca rédeas no Poder Público, ao impor que “as medidas previstas neste artigo somente poderão ser determinadas com base em evidências científicas e em análises sobre as informações estratégicas em saúde e deverão ser limitadas no tempo e no espaço ao mínimo indispensável à promoção e à preservação da saúde pública” (art. 3.º, §1.º).

Depreende-se, portanto, que a limitação da liberdade individual vem ao encontro da promoção da saúde pública, mas desde que realizada com base em evidências científicas e com limitação temporal ao mínimo indispensável à promoção e preservação da saúde coletiva.

Nesse sentido, podem surgir algumas dúvidas: O que se consideram evidências científicas quando os experimentos são recentes? Quando houver dois ou mais estudos com conclusões contrárias, qual deles prevalecerá? Qual seria o tempo mínimo aludido na norma para preservação e promoção da saúde pública?

Este é um debate intenso, que deve ser proporcionado para que as pessoas e autoridades possam decidir qual melhor caminho tomar. Mas a princípio as vacinas devem ser seguras e ter registro na Anvisa (Agência de Vigilância Sanitária).

Ou seja, é possível observar que existem duas normas de âmbito federal, que, em tese, autorizariam o Poder Público efetuar a vacinação obrigatória da população. No entanto, nenhum prefeito, governador, câmara municipal ou assembleia legislativa o fez até hoje.

Cabe colocar que o Plenário do Supremo Tribunal Federal (STF), nas Ações Diretas de Inconstitucionalidade (ADIs) 6586 e 6587, reafirmou que o Estado pode impor aos cidadãos que recusem a vacinação as medidas restritivas previstas em lei (multa, impedimento de frequentar determinados lugares, fazer matrícula em escola), mas não pode fazer a imunização à força.[4]

Já no âmbito da vacinação em crianças, também surgem dúvidas, na medida em que o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) já dispunha, mesmo antes da pandemia, em seu art. 14, §1.º, que “é obrigatória a vacinação das crianças nos casos recomendados pelas autoridades sanitárias.”

Assim, resta a margem de interpretação da lei ao delegar para as autoridades sanitárias a decisão de vacinar a população infantil de forma obrigatória. E, nesse sentido, considerando que a criança é ainda incapaz, os pais ou representantes legais teriam a sua autonomia em relação a seus filhos restringida ou não pelas autoridades sanitárias. Isso gerou um debate ainda maior na sociedade civil e ensejou a discussão jurídica no Supremo Tribunal Federal, que ratificou o direito das crianças se vacinarem, mas não impôs obrigatoriedade para tanto.

Enfim, o tema da vacinação obrigatória contra a COVID-19 é alvo de muita discussão, tanto na comunidade científica quanto na sociedade civil e, embora há leis que permitiriam a compulsoriedade da imunização, até o momento não houve qualquer determinação do poder público nesse sentido, cabendo esta responsabilidade a cada uma das pessoas.

Isso, porém, não tem impedido que certas consequências ocorram para quem não se imunizou, tais como a restrição de circulação em certos estabelecimentos, ao direito de ir e vir, principalmente em aeroportos, e até mesmo a proibição da inscrição em certos programas sociais.

 

 

[1] CF, art. 196. A saúde é direito de todos e dever do Estado, garantido mediante políticas sociais e econômicas que visem à redução do risco de doença e de outros agravos e ao acesso universal e igualitário às ações e serviços para sua promoção, proteção e recuperação.

[2] CF, art. 5.º, II - ninguém será obrigado a fazer ou deixar de fazer alguma coisa senão em virtude de lei; 

[3] https://www.gazetadopovo.com.br/opiniao/editoriais/vacinacao-infantil-covid-lewandowski-mp/ . Acesso em 23.02.2022

[4] https://portal.stf.jus.br/noticias/verNoticiaDetalhe.asp?idConteudo=457462&ori=1 . acesso em 23.02.2022.

André Furtado de Oliveira

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