Desconsideração da personalidade jurídica (21.07.2020)
Inicialmente, é importante ressaltar que a pessoa jurídica não se confunde com a pessoa física ou natural de seus sócios.
O direito criou uma ficção chamada pessoa jurídica, que tem titularidade negocial, titularidade processual e autonomia patrimonial. Quanto a este, a pessoa jurídica tem um patrimônio próprio, o qual não se confunde com o patrimônio dos sócios. Isto é, os bens da sociedade não se confundem com os bens dos sócios.
Isso quer dizer que uma eventual dívida da sociedade acarreta uma responsabilidade para o patrimônio da sociedade e não para o patrimônio dos sócios.
Em sociedades limitadas, por exemplo, os sócios têm sua responsabilidade limitada ao valor de suas quotas, e todos eles respondem pela não integralização do capital social.
Porém, em algumas situações, a lei previu a possibilidade de levantar o véu da personalidade jurídica da sociedade para buscar, no patrimônio dos sócios, a execução da dívida.
Essas situações ocorrem quando os sócios utilizam a sociedade com desvio de finalidade, de forma abusiva, muitas vezes buscando uma fraude.
Primeiro, é interessante observar qual o tipo de relação entre o credor e a sociedade: se é uma relação civil, empresarial, de consumo, trabalhista ou ambiental.
Sabendo o tipo de relação, o operador do direito poderá aplicar a legislação específica ao caso concreto
Nesse sentido, o Código Civil, em seu art. 50, dispõe acerca dos requisitos da desconsideração da personalidade jurídica. Vejamos.
Art. 50. Em caso de abuso da personalidade jurídica, caracterizado pelo desvio de finalidade ou pela confusão patrimonial, pode o juiz, a requerimento da parte, ou do Ministério Público quando lhe couber intervir no processo, desconsiderá-la para que os efeitos de certas e determinadas relações de obrigações sejam estendidos aos bens particulares de administradores ou de sócios da pessoa jurídica beneficiados direta ou indiretamente pelo abuso.
Ainda, quanto às relações de consumo, tem-se a regra prevista no art. 28 do Código de Defesa do Consumidor.
Art. 28. O juiz poderá desconsiderar a personalidade jurídica da sociedade quando, em detrimento do consumidor, houver abuso de direito, excesso de poder, infração da lei, fato ou ato ilícito ou violação dos estatutos ou contrato social. A desconsideração também será efetivada quando houver falência, estado de insolvência, encerramento ou inatividade da pessoa jurídica provocados por má administração.
§ 5° Também poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for, de alguma forma, obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados aos consumidores.
E, quanto aos danos ambientais, tem-se a Lei de Crimes Ambientais (Lei 9.605/1998), que, por sua vez, prevê.
Art. 4º Poderá ser desconsiderada a pessoa jurídica sempre que sua personalidade for obstáculo ao ressarcimento de prejuízos causados à qualidade do meio ambiente.
Basicamente, tendo como parâmetro os dispositivos acima, há duas teorias que explicam o instituto. A teoria maior e a teoria menor.
A teoria maior impõe mais requisitos. Nos casos de abuso da personalidade jurídica, é a teoria adotada pelo Código Civil. Os requisitos são: inadimplemento + desvio de finalidade ou confusão patrimonial (sócio e sociedade).
Por outro lado, tem-se a teoria menor, a qual prevê menos requisitos. Ou seja, o inadimplemento por si só já pode configurar o abuso de personalidade. É aplicável às relações de consumo e aos crimes/danos ambientais.
Os efeitos da desconsideração são: (i) não põe fim à pessoa jurídica, mas tão apenas é um efeito provisório, que se aplica a casos específicos e (ii) só atinge os sócios beneficiados com a fraude, abuso ou desvio de finalidade.
Quanto ao momento de requerimento, poderá ser pedido em todas as fases do processo. O Código de Processo Civil de 2015 prevê o chamado "incidente de desconsideração da personalidade jurídica" em seu art. 133 e seguintes.
O incidente suspende o processo principal. Assim, é preciso garantir a ampla defesa e o contraditório do sócio ou da pessoa jurídica, os quais são citados para apresentar defesa no incidente.
Além disso, a utilização da personalidade da pessoa jurídica também pode ter como fim o desvio de bens pessoais dos sócios para a sociedade, com intuito de se esquivar do cumprimento de obrigações pessoais.
Isso acontece muito quando, para evitar uma execução e torna-la quase inviável, o sócio coloca bens pessoais, como carros, em nome da sociedade.
A jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça tem admitido, em casos excepcionais, a responsabilização patrimonial da pessoa jurídica pelas obrigações pessoais de seus sócios ou administradores. Por meio da interpretação teleológica do artigo 50 do Código Civil, diversos julgados do tribunal aplicam a desconsideração inversa da personalidade jurídica (que afasta a autonomia patrimonial da sociedade) para coibir fraude, abuso de direito e, principalmente, desvio de bens.
Outrossim, a pessoa jurídica muitas vezes é criada para cometer crimes, como o crime de lavagem de dinheiro. Neste caso, a receita de uma atividade ilícita é integrada ao patrimônio de uma sociedade. Esse processo ocorre em três etapas: placement, layering e integration. Trata-se de crime e os sócios podem ser responsabilizados e condenados.
Portanto, vimos que a pessoa jurídica é uma ficção criada pelo direito. E tem ela personalidade e patrimônio próprios, que não se confundem com a personalidade e patrimônio de seus sócios. Muitas vezes, a pessoa jurídica é criada e utilizada para fraudar a lei ou cometer abusos e desvio de finalidade. Nessas ocasiões, o direito previu um remédio chamado desconsideração da personalidade jurídica.